As mudanças da vida e o yoga

No yoga existe um termo que trata da instabilidade das coisas. Uma hora está calor, na outra está frio, por um tempo gosto de berinjela, depois enjoo. Por anos gosto de alguém, depois passo a detestar. Em um momento estou vivo, em outro morto.

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Aprendendo na marra sobre as mudanças da vida.

Esse termo é parinama. As coisas mudam o tempo todo, nada é permanente e mesmo aquilo que dura mais tempo, uma hora acaba. Assim se vão pessoas, civilizações, espécies e planetas. Assim surgiu o universo e um dia ele se extinguirá.

Vivemos a vida permeados por parinama acreditando firmemente na eternidade de nossos relacionamentos e conquistas. Desejamos coisas, pessoas, emoções e temos a certeza de que nossos desejos nos acrescentarão algo, completarão um espaço que precisa ser preenchido, nos darão aquilo que buscamos e simplesmente permanecerão. Por mais que não pensemos nisso de forma tão objetiva no cotidiano, a maneira como atuamos no mundo é um reflexo bastante claro desse padrão comum a toda humanidade, ou ainda a todos os seres vivos.

Passamos a vida toda desejando algumas coisas e evitando outras. Nos alegramos quando conseguimos algo e nos entristecemos quando nossos desejos não são atendidos. Mesmo um filho tão amado é capaz de gerar muitas frustrações em nós por choros intermináveis, doenças, por nossa capacidade limitada de entender um bebê ou nos desafios que a educação nos coloca.

Os equipamentos eletrônicos são um exemplo perfeito de parinama, em especial os smartphones. A cada ano, uma nova versão de um smartphone é lançada. Pessoas fazem fila na frente das lojas, dormem em barracas nas ruas em busca da novidade, mesmo sabendo que em poucos meses todo esse esforço perderá seu significado pelo lançamento de outro modelo mais moderno. Elas sabem disso, não estão sendo enganadas. Sabem que o fabricante lançou um modelo com determinadas funções e que outras funções serão lançadas somente em modelos posteriores mas vivemos a partir de condicionamentos tão fortes que ainda assim se alegram enormemente por alguns momentos ao adquirirem o que tanto desejaram.

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A espera por novas funcionalidades que já chegam obsoletas às lojas.

Poderia se dizer que desde que somos concebidos mentalmente por nossos pais (quando isso acontece) antes ainda da gestação começar, estamos já sendo inseridos em diferentes histórias. Ganhamos um nome, uma família, há a expectativa dos pais com o filho, e etc. Ao longo de nossa vida somos colocados e nos colocamos nos mais diversos agrupamento de hábitos, regras, leis, tratados acordos e condicionamentos de todos os tipos. Nosso gênero, etnia, sexualidade, ideologias, laços familiares, políticos, religiosos, culturais, profissionais e infindáveis outros. Cada um desses grupos tem regras que o mantém coeso, como uma bolha e cada indivíduo é permeado por uma quantidade enorme dessas “bolhas de realidades condicionantes”.

Para que possamos nos relacionar com outros seres, também permeados por bolhas de parinama, precisamos nos definir de alguma maneira, precisamos ter uma forma, ou um conjunto delas que nos delimitem como indivíduo. Um gato mia, dorme, come, afia as unhas na mobília, é repleto de empáfia e dorme mais um pouco. Um gato. Um ser humano é um tanto mais complexo do que isso, mas ainda tem uma borda que o define, o limita.

A essa forma, podemos chamar de asmita, ou uma sensação forte de “eu”.

Asmita é portanto levado de um lado para o outro, se apegando (raga) a o que lhe traz prazer (sukha) e se distanciando, por conta da aversão (dvesa) dos dissabores (dukha) da vida e tendo por consequência essa sensação permanente de insegurança. Essas oscilações acontecem pela inevitável natureza de mudança do mundo, ou parinama.

A mesma sensação de individualidade que permite nos relacionarmos com o mundo é a mesma que leva a terminamos por nos sentir (mesmo que não nos demos conta disso) em um estado de insegurança constante – um comportamento doentio. Somos inseguros com nosso trabalho, nossas relações familiares, os estudos, o clima, a economia do país ou se nossa séria favorita vai ser cancelada. A essa doença, chamamos avidya ou a nossa dificuldade em entendermos quem realmente somos. Sem saber quem somos procuramos elementos externos que possam nos dizer, nos definir, dar forma para esse contorno das diversas bolhas de realidade nas quais estamos metidos. Compramos coisas, temos ideologias, time de futebol, grupo de tomadores de cerveja artesanal e etc.

Mas não somos somente isso. Essa é a forma como nos comportamos enquanto não nos detemos em nos olhar mais atentamente, em estudar mais sobre nós mesmos e conhecermos as razões e os efeitos de nossas ações. É aqui que começa o yoga.

Yoga é entendermos do que somos formados, como interagimos com o mundo, como nos relacionamos com ele.

O conceito Yoga é traduzido de muitas formas para nossa cultura ocidental e quem acredito que mais conseguiu entender como vivemos foi o professor T. K. V. Desikachar. Ele disse:

“Yoga é relacionamento.”

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Professor T. K. V. Desikachar

Nos relacionamos com diferentes aspectos de nós mesmos, com nossa história, com o mundo ao nosso redor e todos os seres que o habitam. Nossas ações surgem de um movimento interno em nós, causam uma interferência no mundo, alteram a realidade ao nosso redor e a nossa própria realidade interna. Por considerar esse raio amplamente abrangente de nossa experiência o yoga nos oferece um olhar abrangente e extremamente inteligente que nos leva a entender, refletir e agir sobre como podemos encontrar diferentes formas de equilíbrio para que cada relacionamento se dê de maneira cada vez mais saudável.

E isso vai acontecer de forma diferente com cada pessoa. Alguns encontrarão um grande alívio em práticas de posturas físicas que tanto caracterizam o yoga, outros em práticas de exercícios respiratórios, alguns se identificarão com reflexões sobre conceitos e ideias, outros precisam de uma caminhada introspectiva na natureza, práticas de meditação ou uma conversa com o professor de yoga. Mas a grande maioria dos praticantes de yoga precisará de uma diversidade de ações ao longo da vida. Essas diferenças acontecem e devem ser consideradas completamente também devido a parinama.

Se o mundo muda, nós mudamos ao longo da vida e somos todos diferentes entre nós, e ainda, somos constantemente afetados ao nos identificarmos com essas mudanças por conta dos nossos apegos e aversões e sofremos com a insegurança residual dessa identificação, o que fazer?

A resposta do yoga é autoconhecimento. A proposta é atentarmos para três grandes grupos de interação e relacionamento com a vida:

Primeiro, precisamos nos esforçar em cuidar de nossa saúde através do exercício físico apropriado, atenção a alimentação e rotinas diárias como o sono, higiene, trabalho, estudos, família. Aqui incluem-se as práticas das posturas físicas do yoga e uma parte das práticas de respiração. Saúde no yoga não é sinônimo de horas por semana na academia, mas sim de um processo mais delicado e sensível onde tudo o que fazemos nos leva à reflexão consciente. Se preciso me exercitar, qual exercício trará também mais conhecimento sobre meu corpo? Quantas horas de sono preciso para acordar revigorado e descansado? Qual alimento traz menos danos a mim e ao outro?

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Só dormir bem já faz muito bem!

Segundo, temos que ter um processo de estudo sobre si mesmo. Esse estudo deve ser acompanhado por alguém que já passou e ainda passa por esse caminho, um professor, que também deve ter seu professor. Não deve ser feito sozinho (somente com a leitura de livros, por exemplo) para que não nos percamos nas armadilhas de nossa própria mente. Aqui incluem-se as práticas de respiração, reflexão, leituras, estudos com o professor e meditação. Esse caminho de estudo auxiliará nas escolhas da etapa anterior.

Por fim, deve haver um processo constante de reflexão sobre nossas ações, sua interferência no mundo e seus resultados. Qual o poder que temos sobre os desdobramentos de nossas ações? Quantas vezes planejamos nossa carreira e vimos tudo ruir por uma força externa como uma mudança na economia ou uma demissão? Passamos constantemente por frustrações ao imaginarmos os resultados de uma ação e não vê-los se concretizando. “Quando tirar férias vou viajar para tal lugar e vou aproveitar cada minuto com esse roteiro que planejei por semanas”. Nas férias, ao dar uma pausa pro corpo, pego uma tremenda de uma gripe. Esse processo de reflexão sobre nossas ações e seus resultados, vai fundamentar os dois grupos anteriores.

O yoga portanto abrange todas as esferas da experiência humana em momentos diferentes da vida reduzindo padrões das bolhas de realidade (ou samskaras) danosos ou entorpecentes e criando novos padrões de maior consciência e lucidez sobre si mesmo em um caminho de compreensão e descoberta de um estado mais completo, abarcante e potente de nossa individualidade. Vamos ao poucos deslocando nossa sensação de eu de uma região dominada pelo egoísmo (natural e inerente ao ser humano), para outra porção de uma inteligência mais profunda que considera além do próprio eu o bem do outro, e entende a partir da sabedoria conquistada, além dos apegos e aversões, que o controle que temos sobre a vida é muito menor do que imaginamos o que nos permite uma sensação de maior lucidez e liberdade sobre a própria vida, sem que nada externamente tenha que mudar.

malabarismo

Não dá pra levar a vida desse jeito pra sempre.

Em um trecho de um texto muito importante no yoga, o Yogasutra (conheça o texto aqui em outro post), o autor nos diz que:

“Uma mente pacífica resulta de um estado mental de amizade frente aqueles que estão felizes, de compaixão com os que estão sofrendo, de alegria pelos que fazem coisas louváveis e de equanimidade frente aos erros dos outros.”

Esse não é um estado mental simples de se alcançar mas qualquer resultado nessa direção representa um grande ganho e alguns quilos a menos para carregarmos sobre as costas no cotidiano. No final das contas o yoga, em seu caminho de grande compaixão, nos ajuda a sofrermos menos. A caminhada começa agora.

 

Ricardo Prates

Texto publicado originalmente no site www.umyogaparacadaum.com.br

2018-02-14T12:53:26-03:00 18 de janeiro de 2017|Categories: Tradição de Krishnamacharya, Yoga, Yoga Sutra|2 Comments

2 Comments

  1. Dolores Cadilhe de Almeida Chiarato 7 de março de 2017 at 03:18 - Reply

    Ricardo, agradeço as informações e a sua disponibilidade em esclarecer minhas dúvidas logo na segunda aula.Gostei muito, o que li – extremamente complexo, intrigante, um “mundo novo” pra mim que estou iniciando, porém muito curioso. Pretendo continuar aos poucos, absorvendo… passo a passo… Forte abraço. Dolores.

    • Ricardo 7 de março de 2017 at 17:52 - Reply

      Por nada Dolores. Seu interesse em yoga e autoconhecimento é valioso e deve ser protegido. Se eu puder ajudar em algo mais, é só dizer. Abração.

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