A imaginação e sua relação com a clareza e o engano.

Como o Yoga compreende a imaginação.

E, minha filha de dois anos, figurinha presente em meus textos de yoga começou a ir para a escolinha. Me valho da Olívia como referência pois como já disse Krishnamacharya, “yoga é sobre a vida” e como boa parte da minha vida é ela, aprendo muito sobre a vida e sobre mim mesmo através dela. Bom de fato a frase de Krishnamacharya não é bem essa, ele disse:

“Yoga trata da respiração pois a respiração trata da vida e yoga é sobre a vida”.

Mas… sobre esse tema falarei em outro post.

Voltando. Fizemos a matrícula da Olívia no ano passado como se deve fazer. De lá pra cá já visualizamos diversos cenários sobre como a levaríamos na escola, horários, agenda de trabalho e todas essas coisas. Situações como essas envolvem uma quantidade enorme de sentimentos baseados na imaginação. Imaginamos se ela vai gostar da escola, se virá contando novidades, como será vivermos a rotina de escola, se vamos ficar tristes, imaginamos as alterações de nossas agendas, imaginamos como o tempo passou tão rápido, se vamos trabalhar mais ou se vamos simplesmente arruinar nossas vidas no Netflix. A imaginação no yoga tem um status muito especial e é considerada uma das principais formas de funcionamento da mente e se conecta diretamente como nossa noção de tempo.

 

chorando a realidade

O período de adaptação na escolinha pode ser difícil… para os pais.

 

Imaginação quanto a capacidade criativa

Um exemplo muito usado no yoga sobre o funcionamento da imaginação é quando a imaginação completa a percepção da realidade com elementos inexistentes. Por exemplo, quando andamos por um rua escura e vemos alguém andando em nossa direção. Mesmo sem saber quem é essa pessoa, as vezes nos sentimos ameaçados e visualizamos situações dramáticas que podem não ter qualquer relação com a realidade. Outro dia um casal de amigos me contou sobre uma experiência que tiveram em casa. Eles também tem um filho pequeno mais ou menos na idade da minha. O filho teve febre e o pai comentou com sua mãe (a avó) rapidamente por telefone sobre a febre e que já estava sob controle. Desligou e voltou a viver a vida. A mãe foi amamentar e acabou dormindo com o filho, o pai cuidava de outras coisas pela casa e esqueceu o celular em algum canto. Não passou muito tempo os avós chegaram na casa do filho esbaforidos preocupadíssimos com o neto. Como os pais não atendiam o telefone, passaram a imaginar uma infinidade de situações, todas com finais trágicos sobre a febre do neto.

 

A gente imagina uma coisa e de repente acontece outra.

Ops, a gente imagina uma coisa e de repente acontece outra.

 

Todos nós passamos por situações como essa diversas vezes ao longo da vida onde a imaginação assume o controle de nossas percepções e nos impede de ver com clareza a realidade. A febre passou no mesmo dia, a noite. Era só um dentinho nascendo.

A imaginação também cria situações agradáveis e prazerosas que podem não se concretizar na realidade além daquela imaginada, no meu caso, como a Francine.

Francine era uma colega de sala da 6ºA. Era também minha paixão secreta, onde cada esbarrada, cada olhar, cada trabalho em grupo era um doloroso prazer. Ela era uma das meninas mais altas e desenvolvidas da sala e eu era de certo o mais tímido, baixo e magrelo aluno (depois passei por um daqueles estirões) e, um nerd de primeira grandeza. O final dessa história você já percebeu.

Decepções amorosas são um bom tema para outro post.

Há também, obviamente, as características da imaginação em seu aspecto criativo mais puro e fundamental das artes, ciências, linguagem e filosofia.

Em todos esses casos, a imaginação pode dar suporte tanto para a compreensão correta de um tema, objeto ou conceito, quando dar suporte ao engano e a confusão, como nos dois casos acima. O oposto é quando usamos a imaginação para alcançarmos um objetivo inicialmente imaginado ou quando usamos conceitos externos para entendermos sobre realidades internas, como meditar sobre o conceito, ideia e imagem de uma montanha para entendermos conteúdos internos em nós mesmos.

 

Imaginação quanto a relação com o tempo

A imaginação também se conecta fortemente com o tempo.

Mas o que é o tempo afinal? Notamos a passagem do tempo no relógio, a mudança do dia em noite, a alternância dos ciclos da natureza do inverno em primavera, da juventude à velhice em ciclos constantes. Mas podemos dizer que esses fatores resumem a experiência que chamamos de tempo?

Minha esposa tem uma tia que mora no interior do Paraná em uma casinha de madeira que era do avô, extremamente agradável e aconchegante. A família toda se reveza indo para lá e mesmo que todos tenham suas casas em Curitiba muito mais equipadas do que a velha casinha de madeira com fogão à lenha, é lá que encontram a paz da simplicidade. Lá o tempo passa em uma velocidade diferente. Feriado de três dias, lá tem cinco. Passamos horas na cozinha comendo o dia todo e emendamos o café da manhã, com o cafezinho do meio da manhã, com o almoço, com o café da tarde, a janta, o lanchinho da noite e aquele lanchinho furtivo antes de ir pra cama. Várias noite cheguei até mesmo a ouvir ruídos na cozinha de madrugada.  Por outro lado, quando estamos no trabalho em um dia normal o tempo as vezes parece que flui muito rápido e nem notamos o dia passar. Mudanças de rotina como essas são muito oportunas para ampliar e intensificar nossas reflexões sobre yoga. Mas isso é tema para um outro post.

A sensação mental de tempo se vincula muito a imaginação em oposição a nossa capacidade de viver o tempo presente. Em alguns momentos sentimos desejos por algo e nos conectamos com a imagem de um futuro alegrador quando entraremos em contato o objeto do desejo, por outro lado nos apegamos a lembranças e memórias prazerosas de eventos passados que numa mistura de memória e imaginação deslocam nossa atenção para um momento que já não existe mais. Em outras situações mergulhamos em aversões por coisas que detestamos e podem acontecer no futuro ou ainda por aflições passadas que ainda nos atormentam. Nas duas situações, de prazer e aversão, envoltos em nossos pensamentos não notamos o momento presente.

A imaginação cria então nossa percepção mental de tempo que difere da existência cíclica do tempo da natureza. A sensação de tempo é a imaginação desempenhado uma ação com grande propensão ao engano.

 

fazendo a pizza de tempo

Que cara perfeccionista… Quando é que essa pizza vai ficar pronta?

 

Poderíamos afirmar então que o bom é viver o tempo presente e a imaginação é danosa por nos tirar dele? Obviamente que não. A imaginação é um atributo importantíssimo da mente e vai nos ajudar a planejar nossa vida, construir máquinas, equipamentos, realizar descobertas científicas, é parte fundamental do pensamento artístico e nos possibilita lidar com conceitos e ideias muito profundas em nós que sem a imaginação não conseguiríamos alcançar. Não é à toa que tantos sábios, mestres, professores, filósofos, yogis se valem tanto de parábolas e conceitos que podem ser somente imaginados mas não alcançados e expressados diretamente através da linguagem. Como expressar completamente a ideia de Deus, através da linguagem sem nos valermos da imaginação? Na infância a imaginação fundamenta o processo de aprendizado e ao longo da vida auxilia grandemente na conexão entre ideias. Uma mente expansiva e aberta certamente é permeada pela imaginação, em oposição à mente embotada e inflexível.

 

 

A imaginação portanto, se conecta fortemente com nosso processo de autoconhecimento e não é positiva nem negativa e assim pode nos auxiliar em nosso caminho de autoconhecimento ou criar mais confusão.

No yoga sutra, a imaginação, ou vikalpa (do original em sânscrito) é definida da seguinte forma:

“Imaginação é a compreensão de um objeto baseada apenas em palavras e expressões, mesmo que o objeto esteja ausente.” – Yoga sutra 1.9

Por que é importante refletir sobre a imaginação? Obviamente por muitos motivos e aqui trato da imaginação quanto ao processo de autoconhecimento. A imaginação nos dá pistas sobre nosso caminho de autoconhecimento. Quando em momentos de aflição, vale se perguntar: “isso que estou sentindo tem uma causa real?”.  Ou como usei nos exemplos acima: “meu filho não dá notícias, isso significa necessariamente que meu neto foi parar no hospital?”, “esse mundo de sonhos vale a pena ou é melhor falar com a Francine?” A imaginação cria tanto uma ponte para uma reflexão confusa e enganosa da vida, quanto para um caminho mais claro e lúcido sobre nossa realidade interna e a forma como ela se projeta na nossa percepção do mundo ao nosso redor.

A imaginação também nos dá pistas sobre nossos condicionamentos e hábitos que repetimos sem a devida reflexão de sua validade pois quando a imaginação se manifesta usa como fundamento padrões arraigados profundamente em nós, os samskaras. Refletir sobre a imaginação vai nos ajudar então a observar como os samskaras se manifestam e isso é importante pois nos ajuda a entender muitas causas de nossas angústia e sofrimento. Por exemplo, quando temos um emprego que não nos traz satisfação. Passamos a semana angustiados imaginando como será o final de semana e o ano angustiados imaginando como serão as férias e assim a vida passa. Será que a angústia é realmente com o emprego? O trabalho é a realidade do cotidiano, dos infinitos momentos presentes, enquanto que esses momentos que imaginamos nos colocam em uma realidade além do tempo com grandes chances de não se realizar. Refletir sobre isso pode nos ajudar a entender se a angústia está realmente no trabalho que está sendo desempenhado ou em algo anterior a ele, que nos leva a nos angustiarmos com a observação da realidade do momento presente.

Em última análise, a imaginação se coloca como um obstáculo à meditação ou como disse o professor Desikachar: “O grande obstáculo à meditação é vikalpa, a habilidade da mente em criar apesar da realidade.” Porém, enquanto estamos começando a caminhada, vikalpa pode ser muito útil.

 

por Ricardo Prates

 


Nesse texto usei algumas vezes um recurso usado pelo escritor Michael Ende em sua obra clássica “A História Sem Fim”. No texto o autor apresenta novos plots diversas vezes ao longo do livro no final dos capítulos e sempre termina com frases como “mas isso é uma outra história que será contada em outro momento”, nos dando ideia de um mundo vasto em seu universo fantástico. Como esse post fala sobre imaginação, achei legal homenagear o autor de um dos livros que mais me marcou. Como sempre, o livro é infinitamente melhor que o filme.

2018-02-14T12:53:25-03:00 22 de março de 2017|Categories: Kriya Yoga, Meditação, Yoga, Yoga Sutra|Tags: , |1 Comment

One Comment

  1. Elizabeth 10 de agosto de 2020 at 09:20 - Reply

    Texto muito interessante! Está me ajudando com os estudos dos Yoga Sutras te Patañjali. A imaginação, quando mal usada, pode nos levar a muito sofrimento, de fato.
    Obrigada por compartilhar!

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